quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Como a mídia manipula os fatos.

Ando atormentado pela seguinte questão: como é que a mídia brasileira conseguiu se tornar tão poderosa e manipular a opinião pública de maneira tão eficiente? Tenho lido, nos últimos dias, alguns artigos de Cavaquinho e Saxofone, livro de Antônio de Alcântara Machado, que retrata de maneira crítica a academia e a imprensa paulista de um século atrás. A impressão que tenho é de que pouca coisa mudou. Mas deixemos as notas tristes dos solos de saxofone para outro dia, pois um amigo me enviou um link para duas versões diferentes de uma mesma notícia, relacionada a José Serra, veiculada na mídia ontem. Eis os vídeos de dois telejornais, a partir dos quais refletirei: http://www.viomundo.com.br/politica/duas-visoes-de-um-mesmo-fato.html .

Começarei analisando a versão da Rede Record: a repórter apresenta a notícia dando a entender que Serra afirmou ser um ambientalista convicto por interesse nos votos de quem votou em Marina no primeiro turno. No entanto, ele defende Belo Monte, tão criticada pela candidata do PV, mas defendida pelos dois presidenciáveis. Em seguida as imagens de Serra saindo do carro mostram vaias e críticas a uma obra mal feita de sua gestão como governador: "vá filmar os buracos", grita o morador ao repórter. A recepção hostil fez Serra mudar os planos, entrar rapidamente no carro e ir embora. Em outro local, Serra conversa com a imprensa e solta a pérola "eu tenho um currículo ambiental muito bom (?), de maneira que a aproximação com o PV nesse aspecto é absolutamente natural" (reparem que ele disse PV e não Marina). Termina defendendo a construção de Belo Monte, mas corrigindo "os absurdos ambientais (como?), as falhas econômicas (podia ter corrigido as do Rodoanel primeiro) e as falhas do próprio projeto (quais?)".

Vejamos agora a versão da Rede Globo: já começam dizendo que Serra recebeu o apoio de diversos políticos e saberá conseguir maioria no congresso. Serra é abraçado pelos moradores, sem vaias nem protestos. A obra inaugurada "comunica o maior aeroporto do país, que é o de Cumbica, com o maior porto do... (do que mesmo?) país que é o de Santos", explica o candidato, com ar de autoridade em logística, aos repórteres, complementando que seu grandioso feito possibilitará a implantação "de indústrias e de emprego (sic)". Sõ faltou explicar como, já que Cumbica está próximo de seu limite operacional (http://jovempan.uol.com.br/programas/terminal-de-cargas-de-cumbica-esta-perto-do-limite-207786,,0) e o porto de Santos também opera em situação crítica (http://www.readmetro.com/show/en/MetroCampinas/20101001/16/1/). Depois disso Serra se gaba de ter "experiência em formar maioria"(?). "O que eu quero fazer (...) é mostrar quem eu sou, o que eu fiz, e o que eu pretendo" (essa frase merece um artigo à parte, senão vários). O final da reportagem mostra Serra recebendo apoio de vários políticos da base aliada e anuncia uma reunião dele com "políticos vitoriosos do PSDB".

É a mesma notícia, mas deformada para forçar ao telespectador determinada interpretação, dentre as várias possíveis. Dessa forma a mídia deixa de ser formadora de opinião para se tornar manipuladora de opinião. Recorro a Cavaquinho e Saxofone: "os pretensos órgãos autorizados da opinião popular entre nós (com as exceções de estilo) representam na verdade o sentir de minguados mas poderosos grupos de cavalheiros bem instalados na vida ou na política". Pois não é esse o caso dos donos dos principais jornais, revistas e emissoras de TV do país?

O jornal O Estado de S. Paulo, que a um mês do primeiro turno das eleições assumiu publicamente, em um editorial intitulado "O mal a evitar", seu apoio à candidatura de Serra, é o mesmo que, em 1964, apoiou sem ressalvas o golpe militar que instaurou a pior ditadura que já tivemos. Na ocasião, o golpe foi anunciado em suas manchetes com o nome de "Revolução Democrática". Agora Serra é o "herói" da vez. Herói forjado pelo governo FHC que deu a ele o ministério da saúde no momento exato de colher os frutos do excelente trabalho do ex-ministro Adib Jatene. E não bastou: perdeu para Lula nas eleições em 2002. Desde então, a imprensa paulista e o governo do estado de S. Paulo se tornaram os dois principais escultores da imagem de Serra.

A rede globo, essa mesma do vídeo comentado neste texto, usou dinheiro ilegal para se tornar uma das maiores redes de TV do mundo e usou seu poder para defender a visão política de seu fundador, Roberto Marinho. A história da TV Globo é muito bem contada no documentário Muito Além do Cidadão Kane (disponível, tanto para download quanto em streaming, neste endereço: http://www.archive.org/details/Roberto_marinho_alem_do_cidadao_kane). A Globo usou seu poder para transformar o desconhecido governador de Alagoas, Fernando Collor de Mello,no homem certo para governar o Brasil. Deu no que deu. A eleição de 1989, entre Collor e Lula, foi vergonhosamente manipulada pela Globo, que, dentre outras coisas, lançou um compacto do debate entre os candidatos mostrando o melhor de Collor e o pior de Lula. Tudo editado de maneira bem mais tendenciosa do que a reportagem sobre Serra que serviu de pretexto a esta discussão. Está tudo lá no filme, que deveria ser obrigatório, e não censurado, para os brasileiros (a Globo usou seu poder para conseguir proibir a venda do filme no Brasil, mas não é crime assisti-lo nem divulgá-lo).

Enfim, os grandes órgãos de imprensa do Brasil possuem históricos altamente reprováveis, mas dos quais se orgulham, pois consideram que fazem o melhor para o país. Não conseguem perceber que o mundo é mais que o próprio umbigo. Chico Buarque, um grande crítico da imprensa brasileira, disse em entrevista: "a mídia ecoa  muito mais o  mensalão do que fazia com aquelas histórias do Fernando Henrique, a compra de votos, as privatizações. O Fernando Henrique sempre teve uma defesa sólida na mídia, colunistas chapa-branca dispostos a defendê-lo a todo custo. O Lula não tem. Pelo contrário, é concurso de porrada para  ver quem bate mais".

O motivo que me levou a fazer este blog é que, ao ver toda a imprensa mobilizada a favor de Serra, senti medo de que estejam tentando repetir 89. A Globo não consegue mais fazer isso sozinha, mas, com a ajuda da Veja e dos jornais paulistas, quem sabe? De qualquer forma, independente do resultado das eleições é visível que ela não concentra mais tanto poder, e atribuo parte dessa perda de poder à internet, parte aos sucessivos exageros dela mesma, que acabaram evidenciando seu aspecto manipulador e resultando em perda de credibilidade.

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