domingo, 17 de outubro de 2010

As lições dos mestres

Hoje refleti sobre um discurso de Darcy Ribeiro feito um mês antes de sua morte, na Associação Brasileira de Imprensa, por ocasião da decisão do governo de privatizar a Companhia Vale do Rio Doce (CVRD). Eis o discurso, além de um vídeo de FHC afirmando que quem mais lutou pelas privatizações em seu governo foi José Serra: http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=17051.

Darcy, em cadeira de rodas, disse a seus amigos, à época: “Vou ao ato na ABI pela Vale nem que seja carregado”. A leitura dessa frase me trouxe à mente um gesto parecido, de Sérgio Buarque de Holanda, um dos professores de Darcy Ribeiro na antiga Escola de Sociologia e Política de São Paulo: doente e com sérias dificuldades de locomoção, Sérgio fez questão de ir ao Colégio Sion no dia 10 de fevereiro de 1980 para participar da fundação do PT, o primeiro partido político brasileiro criado por iniciativa popular.

O gesto de Sérgio tem um significado simbólico muito forte: em Raízes do Brasil, publicado em 1936, ele argumentava que a forte urbanização pela qual nosso país passava, bem como a industrialização inerente a ela, iria resultar em uma mudança profunda de nossa organização social, da qual a classe operária surgiria como uma nova força política. O golpe de 64 foi uma tentativa de impedir o curso de um processo histórico a partir da velha fórmula que as elites sempre usaram para manter o povo sob seu domínio ao instaurar ditaduras: aumento dos direitos sociais em troca da redução dos direitos civis e políticos. Deu no que deu. A ditadura terminou e o processo seguiu seu curso com os trabalhadores fazendo greves e reivindicando direitos. Até aí nada de novo: greves e reivindicações eram comuns em São Paulo, pelo menos, desde a época da imigração italiana. A novidade é que a luta dos trabalhadores, no final da ditadura, estava se modificando: saindo de dentro da fábrica e indo para as ruas. Já não se tratavam mais de greves dentro das fábricas, mas de greves de toda uma categoria profissional unida (o que também já existia antes, mas a novidade é a politização crescente dos movimentos sindicais), ou até mesmo uma greve geral, como aquela que é considerada um marco do fim do regime militar.

À frente deste processo de unir os trabalhadores para juntos terem mais poder reivindicatório, estava o atual presidente Lula. A luta dos trabalhadores, antes restrita às negociações com o patronato, passou a ser também política: os trabalhadores precisavam ter seus interesses defendidos no congresso,  o que só seria possível através de um partido que os legitimasse como força política. E assim surgiu o PT.

Tratava-se, portanto, de uma novidade no Brasil, que atraiu diversos intelectuais, como Sérgio Buarque, Antonio Candido e Darcy Ribeiro, justamente por representar uma força política destinada a representar aqueles outrora excluídos da representação política. A reação das elites, que viu nisso uma ameaça a seus privilégios, não tardou a reagir, aproveitando-se da inspiração marxista que originou o PT para associá-lo aos comunistas comedores de criancinhas, assim como se faz hoje em dia nas capas da Veja.

É verdade que o PT daquela época, como toda força política nova, era caracterizado por um certo radicalismo ideólogico, fruto da própria inexperiência com o poder. Com o tempo, o PT foi conhecendo a diferença entre teoria e prática, aprendendo sobre a importância de fazer alianças e de respeitar os interesses de todos. É importante frisar que a inspiração marxista do partido não implica em comunismo, já que os estudos de Marx buscavam compreender o sistema capitalista, tendo as relações de trabalho como ponto central. Aliás, a queda da URSS aconteceu há muito tempo e não faz sentido apostar neste modelo hoje em dia. Muita gente não vê diferença entre direita e esquerda justamente por associar direita ao capitalismo e esquerda ao comunismo. Não é mais assim, a diferença básica, hoje em dia, é que a direita é mais apegada à manutenção das tradições, buscando fortalecer as grandes corporações para que elas aumentem sua produção, gerando receita para o governo, enquanto a esquerda defende a humanização do capitalismo, dando ao Estado um papel mais ativo na economia e buscando maneiras de assegurar que todos se beneficiem do crescimento econômico.

Essa nova realidade, no caso do Brasil, fez com que tanto a direita quanto a esquerda passassem a se preocupar em atrair investimentos externos, equilibrar as contas públicas e investir em infra-estrutura para permitir o aumento da atividade produtiva, responsável pela geração de empregos. A diferença é que a direita faz isso pensando exclusivamente em aumentar a receita do Estado para poder garantir a continuidade do crescimento econômico, enquanto a esquerda busca, também, garantir que esse crescimento beneficie a todos.

A questão das privatizações poderia ser irrelevante nos países onde as empresas nacionais possuem grande capacidade de investimento, mas não é o caso do Brasil: aqui, excetuando-se as estatais, ninguém pode investir muito no país, e por esse motivo todas as empresas privatizadas caíram nas mãos de estrangeiros, ainda que em muitos casos houvesse participação do capital nacional (Estou desconsiderando a privatização da Nossa Caixa, que é um exemplo interessantíssimo: enquanto o governo tucano de SP buscava se livrar de suas estatais, o governo federal petista tinha interesse em fortalecer o Banco do Brasil). A Vale caiu em mãos de empreiteiras nacionais, mas os altos investimentos exigidos resultaram na participação cada vez maior de investidores estrangeiros na empresa. Darcy Ribeiro tinha razão: privatizar é deixar nossas riquezas nas mãos de quem só se preocupa com seus próprios lucros e não tem consideração pelo povo brasileiro. Basta uma crise econômica qualquer para os gringos demitirem os funcionários de suas filiais no Brasil, agravando os efeitos dela por aqui. Basta a diretoria da empresa optar por priorizar investimentos em um outro país qualquer e podemos esquecer todos os investimentos prometidos para o Brasil.

A próxima empresa brasileira que os tucanos desejam privatizar é a Petrobrás, que o governo FHC estava desmembrando para vender. No caso do petróleo, a situação seria muito mais desastrosa, primeiro porque, no caso da Vale, a existência de grandes empreiteiras no país que demandam grandes quantidades de minério resultou em uma alta participação nacional na empresa, mas e no caso da Petrobrás, quem a compraria? Só os grupos estrangeiros se interessariam por ela.

E o que significaria uma privatização da Petrobrás? Os tucanos quebraram o monopólio da estatal na exploração e refino de petróleo argumentando que é ruim para o país deixar a exploração limitada à capacidade de invstimento de uma única empresa. O fato é que isso nunca foi problema, tanto é que o país se tornou auto-suficiente em petróleo e somente durante o governo FHC (por motivos óbvios) o investimento da Petrobrás foi aquém do necessário. Quantas refinarias os grupos estrangeiros construíram no Brasil? Eles podem construir, inclusive brigaram muito para obter esse direito, então porque não constróem? Se não fazem isso agora não há razão para crer que farão no futuro. Pior do que depender da capacidade de investimento de uma empresa estatal é depender da vontade de executivos estrangeiros que podem, a qualquer momento, reduzir drasticamente os investimentos no Brasil devido à descoberta de um novo campo de petróleo no Iraque, por exemplo.

Isso explica porque Darcy Ribeiro se posicionou contra a venda da Vale, e certamente estaria dizendo o mesmo com relação à Petrobrás. Aliás, outro momento interessante de seu discurso se refere à visão tucana de pensar exclusivamente em termos econômicos, esquecendo-se a importância eestratégica e social de tais decisões políticas. A privatização pode resultar em aumento dos investimentos ou mesmo dos lucros, mas a que custo? Será que a Vale, após ser privatizada, passou a dar maior importância à preservação do meio-ambiente? Será que respeita todos os direitos trabalhistas de seus funcionários? Será que oferece treinamento adequado a eles com relação à segurança? Uma empresa privada pode até fazer isso, mas uma pública faz com certeza. Por fim, fica a questão primordial, já discutida: vale a pena dar a outros a responsabilidade de gerenciar recursos estratégicos?

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