sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Coisas para inglês ver.

Segundo José Murilo de Carvalho, a expressão “para inglês ver”, que significa lei ou promessa feita por mera formalidade, sem jamais ser efetivamente posta em prática, surgiu quando o governo brasileiro criou, em 1831, uma lei proibindo o tráfico negreiro para cumprir exigência de um tratado assinado com a Inglaterra, mas na prática a lei nunca saiu do papel, só servia para inglês ver.

Tal expressão é um retrato do Brasil, país onde o que importa são as formalidades. Já no período colonial era comum as famílias brasileiras viverem de forma humilde, por não terem condições de comprar certos alimentos, que custavam caro, e roupas novas. Mas essas mesmas famílias tinham belos vestidos caríssimos guardados para ocasiões especiais, e sempre que recebiam visita colocavam roupas chiques e ofereciam banquetes a autoridades da coroa e da igreja. Resultado: em Portugal se pensava que os brasileiros eram riquíssimos e daí resultava que o rei mandava aumentar os impostos, tornando os brasileiros ainda mais pobres.

Portanto, nossa cultura se baseia em formalidades. Importa a beca, não a cabeça. Por isso mesmo tanta gente grita que deveria haver vestibular para escolher os parlamentares ao invés de uma eleição onde analfabeto também vota. Ninguém se lembra que Amadeu Amaral, um dos grandes intelectuais brasileiros da primeira metade do séc. XX só estudou até a quarta série, o que não impediu que se tornasse um grande jornalista, cargo que não conseguiria ocupar se tivesse nascido um século depois, graças a esse pensamento mesquinho de julgar uma pessoa por um currículo baseado em títulos e formalidades. Qualquer opinião veiculada na internet hoje em dia é assinada por um doutor em alguma coisa ou por alguém famoso. Tem até poema de Fernando Pessoa com a palavra "internet". Ou seja: um anônimo qualquer escreve alguma coisa e lança na rede. Mas quem é ele? um desautorizado, então assina com o nome de um famoso ou de algum desconhecido que é doutor e dá aula na universidade da rua tal e todo mundo acredita, pois é a autoridade do autor, e não o mérito do texto, que importa.

O brasileiro se engana ou se deixa enganar? Reduzir tudo a formalidades, a aparências, não vai nos levar a lugar nenhum. A posição dos candidatos à presidência da república com relação ao aborto não é a questão sobre a qual devemos basear nossa escolha, até porque essa decisão cabe ao legislativo. O aborto é tolerado por nossa sociedade, inclusive pelas pessoas que discursam contra sua legalização. Ele existe, mas todos fazem vista grossa. O debate só tomou esta dimensão porque existir na prática é uma coisa, mas existir na lei é outra, inadmissível: lei para inglês ver.

Ontem comentei a postura vergonhosa da imprensa, que se diz democrática, mas demite os jornalistas que não concordam com a opinião oficial da instituição (http://vermelhosobreazul.blogspot.com/2010/10/censura-interna-da-midia.html). Um funcionário do Palácio do Planalto pode falar mal do presidente da república, "ditador" segundo a mídia, mas um funcionário do "democrático" jornal O Estado de S. Paulo é demitido por dar seus pitacos. O que a imprensa quer é implantar no Brasil uma democracia para inglês ver, onde quem concorda com o ponto de vista de meia dúzia de donos de jornais é cidadão consciente e quem tem outra opinião é lunático ou burro.

Deixemos os ingleses em Londres bebendo chá e façamos um Brasil para brasileiro ver. Ou, como disse Paulo Moreira Leite, "que tal abortar a hipocrisia? http://www.viomundo.com.br/politica/paulo-moreira-leite-que-tal-abortar-a-hipocrisia.html

Nenhum comentário:

Postar um comentário