segunda-feira, 2 de maio de 2011

Me deixem falar a minha língua!

"A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros
Vinha da boca do povo na língua errada do povo
Língua certa do povo
Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil
Ao passo que nós
O que fazemos
É macaquear
A sintaxe lusíada
A vida com uma porção de coisas que eu não entendia bem"
Manuel Bandeira

A polêmica recente em torno da adoção, pelo MEC, de um livro didático que busca educar jovens brasileiros para a cidadania, e não para o preconceito, nos mostra o quanto uma parcela expressiva da nossa sociedade permanece atrasada no campo intelectual. Desde quando Amadeu Amaral publicou o primeiro estudo sobre o dialeto caipira paulista, muita pesquisa foi feita sobre a língua brasileira, tanto no que diz rspeito ao regional quanto ao nacional. Entretanto, velhos carcomidos ainda gritam em favor da língua de Camões, contra a língua de Guimarães Rosa.
Meu primeiro contato com esta polêmica foi através de um programa de rádio de três bacanas, Carlos Heitor Cony, Xexéu e Viviane Mosé, que malharam o livro e defenderam com os argumentos mais ridículos, alguns dos quais transcrevo e comento abaixo:

Xexéo: "Tem muito lugar fora da escola pra aprendê a falá errado. Então... Eu não acho que é a escola que tem que ensiná isso" (reparem no uso do verbo "ter" no sentido de "haver", sem falar nas diferenças entre o português falado e o escrito, que procurei explicitar aqui). "A escola tem que ensiná a falá certo" (O que é falar certo?). "Esse negócio de preconceito linguístico beira um pouco o ridículo, né?" (Claro, afinal, as pessoas que falam "errado" são ridículas, ao contrário de você que é superculto!).

Viviane: (Escandalizada ao falar sobre a filha da babá) "uma menina superestudiosa e escrevia muito corretamente, mas falava completamente fora da norma culta" (ou seja, falava o dialeto da comunidade à qual pertencia) "e eu perguntei 'mas os seus professores não te corrigem?'" (corrigem o quê? Ela não é a melhor aluna da turma?). "Quando você aprende a norma culta da língua, você desenvolve espaços de pensamento e reflexão mais amplos, com vocabulário correto, com as estruturas do pensamento mais complexas" (Esse foi o pior. Faltou citar um estudo sobre isso, aliás, existe?). "Ler o mundo, interpretar o mundo tendo como referência a língua portuguesa, isso é fundamental" (e quem faz isso melhor são justamente os que vivem a realidade, ao invés de buscá-la na norma culta dos noticiários).

Cony (esse eu admirava quando estava no ensino médio e trabalhava dissertações dele na aula de redação, mas depois que passei a ouvir suas pérolas na CBN, ele caiu muito no meu conceito): "A vida social exige determinados parâmetros: no vestuário, na apresentação, na higiene" (enfim, a norma culta nos diferencia, assim como a higiene e o vestuário, da gente diferenciada). "Dentro do convívio social, a gente se  obriga a se comportar direito na mesa, a não botar os cotovelos na mesa, a não comer de boca aberta (dessa eu não sabia, sempre abri a boca para comer, que vexame!), são coisas que o convívio social exige e a língua, evidentemente, é uma delas (e o Cony não se mistura com gente diferenciada, pois ele sabe falar a norma culta e comer com a boca fechada. Suspeito que ele também saiba falar em braille e lavar as mãos antes de sair do banheiro. Só não sabe ficar de boca fechada quando não está comendo.


Alguns dias depois recebi um e-mail intitulado "Coitada da nossa pobre e rica LÌNGUA PÀTRIA...". Não sabia que nossa língua pátria era essa. Achava que língua pátria era a língua falada pelo nosso povo, na nossa pátria, nas nossas ruas, e não aquela de além-mar, falada por outro povo, de outra pátria, da qual não somos mais colônia. Como se não bastasse o episódio recente da reforma ortográfica, estou vendo um bando de defensores do pacto colonial lingüístico (com trema mesmo) lutando contra a nossa independência, contra o jeitinho brasileiro de falar e escrever, que, como mostram vários estudos, começando pelo de Amadeu Amaral, diferencia nossa língua da dos lusos, assim como nossa cultura se diferencia da deles. Não persistamos no erro: a língua brasileira está aí, nas ruas, nos supermercados, nas fábricas, no campo e nos lares. Quem a ignora age como um bebê desejando mamar nos peitos de Camões que não podem amamentar ninguém. Temos Guimarães Rosa. Crescemos. Vamos falar na nossa língua.


Para finalizar, sugiro a leitura de um excelente texto de Marcos Bagno sobre o preconceito lingüístico e o boicote à nossa verdadeira língua pátria: http://marcosbagno.com.br/site/?page_id=456

2 comentários:

  1. Finalmente vejo um texto coerente sobre o tema. Já estava achando que minha opinião era única em um meio cheio de pessoas que são consideradas, e se acham, intelectuais. Falando de preconceito linguístico, lembro de quando era criança na minha pequena cidade no Interior de Minas, e quando chegava alguém falando com o povo simples usando a norma culta da língua, era só ele virar as costas e alguém ria e falava: - Olha que entojo. Porque quem assim falava naquelas bandas era chamado entojado, e motivo de gozação entre os cidadãos locais.

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  2. Um texto distorcendo todos os comentários citados, foi isso que li. Só lamento que haja quem pense que realmente devemos ter livros aceitando e ensinando fala e escrita incorretas. Aprender a falar e escrever errado é muito fácil e não precisa da escola pra isso (aliás, hoje em dia, ninguém liga muito pra escola mesmo, né?)
    Primeira parte ridícula do seu texto é transcrever literalmente o que as pessoas citadas falaram. É óbvio, claro e evidente que ninguém *fala* perfeitamente seguindo a norma culta; se essas mesmas pessoas fossem entrevistadas por via escrita, você não teria nenhum dos seus "argumentos" ali, não?
    Segundo, se você não compreende que EXISTEM SIM certas regras sociais, então talvez nada que eu argumente aqui seja realmente válido. Mas vou tentar: você vai pra Unicamp - assistir suas aulas, bandejar - de chinelão havaiana, sua calça jeans de sempre e uma camiseta do curso. Sem problemas. Agora, você iria assim numa entrevista de emprego? Na sua colação de grau? Numa formatura ou casamento? Eu realmente espero que não. E é o que a sociedade de modo geral também espera: que saibamos nos comportar de acordo com cada situação ou ocasião. É a mesmíssima coisa com a fala e a escrita. Se eu falar em casa, com a minha família que eu "peguei as coisa no carro", não tem nenhum problema. Agora, se eu falar assim com meu chefe, com meu orientador, com meus alunos, é inaceitável, além de constrangedor.
    Agora, a pérola foi essa frase: "dessa eu não sabia, sempre abri a boca para comer, que vexame!". Sério mesmo? Precisou descer nesse nível de forçação de barra pra fingir que está argumentando? Quero crer que um formado em "estudos literários" e mestrando no IEL consegue compreender o sentido de uma frase simples e corriqueira como "não comer de boca aberta". Se não entendeu mesmo, eu explico: trata-se de uma figura de linguagem, uma expressão comum da nossa língua que você aparenta tanto defender. Troque o verbo "comer" por "mastigar" e _acho_ que todas as suas dúvidas serão sanadas.

    Os livros, a escola, têm a obrigação de ensinar o que os alunos não sabem. Obrigação de formar um cidadão capaz de se portar de modo adequado em qualquer situação em sua vida. E os livros de português (que, quer você queira, quer não, é o mesmo idioma tanto de Camões quanto de Guimarães Rosa) estão aí para ensinar os alunos a escrever corretamente. Errado eles já escrevem. Não está obrigando-os a falar seguindo letra a letra o que escrevem. Qualquer idioma falado é infinitamente mais complexo que o escrito, e pouco sujeito a regras (vide o nosso uso - brasileiro - quase universal de início de frase com pronome oblíquo; na norma culta isso é inaceitável). Mas a escrita ainda está, e continuará estando, sujeita às nossas regras de sempre, e que, caso você também não saiba, não são totalmente idênticas às do português europeu.

    Como já disse o Senador Cristovam Buarque, "No lugar de acabar com a desigualdade, estão querendo acabar com preconceito contra ela. Acomodando o povo." Explicando, para não dar margem às suas interpretações mirabolantes: ele quer dizer que ao invés de darmos educação decente a todos, para que todos saibam se portar corretamente em todas as situações, preferimos deixar como está e somente passar a mão na cabeça dos "ignorantes", dizendo aos outros para respeitá-los como são.

    Por fim, se está mesmo comparando a [enorme] população do país que fala errado às criações geniais - e únicas, já que mais ninguém nesse mundo as usaria ou usa - de Guimarães Rosa, só posso lamentar.

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