quarta-feira, 3 de novembro de 2010

O ódio dos derrotados

Democracia é uma palavra de origem grega e significa "poder do povo" (demos = povo, kratos = poder). Portanto, o objetivo final de um regime democrático é dar voz a todos, permitir que cada um se manifeste de acordo com suas próprias convicções, mas, como é impossível agradar a todos, a decisão final se baseia na vontade da maioria.

Sérgio Buarque de Holanda atentava para a confusão entre democracia e liberalismo, tão comum na sociedade brasileira. É justamente esta confusão que sustenta o frágil argumento de que democracia consiste em rotatividade do poder. Não. Democracia é o poder do povo, no caso do Brasil, exercida de forma representativa, ou seja, damos ao legislativo o poder de nos representar nas votações que definem os rumos do país, além de elegermos os principais cargos do poder executivo: prefeito, governador e presidente da república.

O fato é que, até do fim da ditadura militar, só se respeitavam os valores democráticos enquanto estes não entrassem em conflito com interesses das elites. Somente após a redemocratização do país é que a verdadeira democracia passou a florescer entre nós, visto que agora todos os brasileiros possuem representação política, reivindicam, fiscalizam o poder público e vão às urnas escolher seus governantes.

Os direitos políticos que os brasileiros de hoje possuem são fruto de uma luta histórica pela qual muitos brasileiros foram torturados e até mortos. Luta de um povo formado por pobres e ricos, das mais diversas raças e credos religiosos, e que se desenvolveu em todo o território nacional, nas ruas, nas universidades, nas igrejas, nas fábricas, enfim, em diversos espaços diferentes, cada um com uma característica específica, mas em todos os lugares havia uma mesma luta e um mesmo ideal. E assim nosso povo conquistou a liberdade e a democracia.

Por isso, é lamentável que parte da nossa sociedade queira um retrocesso. Se, durante a campanha de Serra à presidência da república, percebi em muitos de seus aliados políticos e eleitores um sentimento de nostalgia da ditadura, após a confirmação de Dilma como nossa nova presidente, recebi a confirmação disso: incitados por Mayara Petruso et al., diversos internautas começaram a publicar no twitter o que há de mais condenável em termos de preconceito. Ao invés de celebrarem a democracia, se recusaram a aceitar a derrota do candidato apoiado por eles e passaram a incitar o ódio aos nordestinos, aos pobres e às raças não européias, "culpando-os" (é vergonhoso votar?) pela escolha da candidata que não era da preferência deles. Eis uma pequena coletânea da barbárie: http://www.youtube.com/watch?v=tCORsD-hx0w

Em primeiro lugar, cada um deve votar segundo suas próprias preferências. É necessário respeitar a liberdade de opinião e de pensamento de cada um e aprender a não discriminar ninguém por ter outra visão de mundo. Com que direito uma pessoa afirma que a outra "não sabe votar", sendo tal constatação fruto de suas convicções pessoais? Aí entra o argumento do "eu tenho estudo". E daí? democracia é para todos, eu também tenho estudo e votei na Dilma. Aliás, os maiores intelecutuais brasileiros votaram nela (eis alguns exemplos: http://www.advivo.com.br/blog/luisnassif/o-manifesto-dos-intelectuais). Ambos candidatos receberam votos em todos os municípios do Brasil, incluindo o "Sul-Sudeste", onde, segundo a turma de Mayara, "se sabe votar".

O discurso dessas pessoas é contraditório do começo ao fim. São Paulo, Minas e Rio de Janeiro são colégios eleitorais muito maiores do que qualquer estado nordestino. No Rio, Dilma dominou, Minas ficou dividido e em São Paulo, tradicional reduto tucano, a vantagem de Serra foi pequena. Se o tal "sul-sudeste" realmente tivesse escolhido Serra, a vitória de Dilma no nordeste teria sido inútil. Além disso, Dilma venceu em metade do território dos estados do "sul-sudeste" (http://www.estadao.com.br/especiais/mapa-da-votacao-para-presidente-nos-municipios,123626.htm) e é só fazer as contas para perceber que mesmo sem nordeste ela teria sido eleita.

A crença de que nordestino vende o voto por um saco de arroz é outra bobagem que só nos mostra quão grande é a ignorância dessas pessoas, incapazes de perceber o óbvio: enquanto tradicionais caciques da política nordestina não foram eleitos, São Paulo deu mais de 400.000 votos a Paulo Maluf. Dirão que o Pará elegeu Jader Barbalho, prova do atraso daquele estado. Ok, mas São Paulo, terra da maioria dessas pessoas que odeiam os nordestinos e os analfabetos, elegeu Tiririca, nordestino e supostamente analfabeto, para representá-lo na câmara. Além disso, nas últimas eleições, São Paulo foi o campeão em eleger parlamentares exóticos e "celebridades", como Clodovil, Frank Aguiar e Agnaldo Timóteo. Grande contraste com a "atrasada" Bahia, onde ridículos como o Da Luz, que aparecia no horário eleitoral com lâmpadas penduradas no corpo, jamais foram eleitos.

 Os antidemocráticos também manifestaram a crença de que no nordeste os eleitores vivem, todos, no semi-árido e no norte só existem índios. Aos que acreditam nessa bobagem, sugiro que troquem uma hora de twitter pela página do IBGE, onde há o cidades@, que nos mostra onde ficam os municípios mais populosos (no nordeste, ficam no litoral, seguidos pela Zona da Mata e pelo Agreste. Uma percentagem muito pequena da população vive no semi-árido. No norte, as cidades se concentram às margens dos rios e, em ambas as regiões, há grande concentração populacional nas capitais). Nestas regiões há, sim, educação pública para todos ou quase todos, o analfabetismo vem diminuindo e, nas duas edições da Olimpíada Nacional em História do Brasil, o nordeste foi mais premiado do que as demais regiões do país (http://www.mc.unicamp.br/2-olimpiada/premiacoes/index).


Quanto a instituir o voto censitário, não vejo motivo. Em primeiro lugar, cada um, na condição de cidadão, tem o direito de eleger seus governantes. Se um pobre tem preferência por algum candidato é porque, mesmo tendo pouca instrução, percebe que as políticas defendidas pelo candidato o beneficiarão. Quem tem diploma age de outra forma na hora de escolher em quem votar?


Além disso, é curioso notar que a cidade onde Serra teve o maior percentual de votos está situada no norte do país: trata-se de Rio Branco, capital do Acre. Mas não é lá a "terra dos índios vagabundos que vivem às custas do bolsa-família pago pelo sul-sudeste"? Não é lá que "só tem burros analfabetos dispostos a tocar o voto por um saco de arroz"? Como explicar ter sido justamente lá o palco da maior vitória do "candidato dos inteligentes" contra a "candidata dos ignorantes"?

Por fim, diante de tantos comentários do tipo "agora nós do sul-sudeste teremos que continuar trabalhando para sustentar nordestino vagabundo com bolsa-família", faço uma pergunta a essas pessoas: se são contra o bolsa-família, por que motivo votaram no candidato que prometeu não apenas manter o programa, mas também dobrar o valor dessas bolsas, criar 13o e ainda por cima aumentar a quantidade de bolsas oferecidas?

A OAB-PE entrou hoje com representação criminal contra Mayara na justiça paulista. Ao ler notícia sobre isso (http://diariodonordeste.globo.com/materia.asp?codigo=878557), me espantei ao descobrir que ela é estudante de direito, tendo agido, portanto, de forma contrária à função social de sua futura profissão. Que seja julgada de forma democrática, apesar de ela não gostar da democracia, e sua condenação, iminente diante de tantas provas e testemunhas de seu ato, sirva de exemplo para coibir atos semelhantes.

O episódio protagonizado por Mayara me fez lembrar de uma ação de um grupo neonazista em São Paulo, há cerca de uma década, quando picharam o local com ameaças aos nordestinos que vivem em São Paulo. Ben Abraham, imigrante polonês vítima do nazismo acredita que, quando não denunciamos a perseguição às minorias, damos carta branca para que a barbárie continue acontecendo (http://ditaduranazista.blogspot.com/).

Por fim, recomendo a leitura do artigo de Maria Rita Kehl que resultou em sua demisssão do Jornal O Estado de S. Paulo. Sua leitura e a posterior demissão de sua autora evidenciam que comportamentos como o de Mayara são incentivados por uma mídia que reforça estereótipos e mitos relacionados ao norte e ao nordeste e cala quem ousa defendê-los (Artigo: http://www.viomundo.com.br/voce-escreve/maria-rita-kehl-dois-pesos.html Entrevista com a autora: http://terramagazine.terra.com.br/interna/0,,OI4722228-EI6578,00-Maria+Rita+Kehl+Fui+demitida+por+um+delito+de+opiniao.html).

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